segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

ALEA JACTA EST.- PARTE IV

O DIÁRIO DE AZAZEL – PÁGINAS 1737 – 1741


Boa Noite Diário...
Como assim finalmente reparei que você existe?
É impressão minha ou estou sentindo uma pequena dose de ressentimentos entre nós?
Eu não te dou atenção?
Não fale assim, não tenha ciúmes de Rosa e nem dos Compadres, você sabe que meu coração é grande e cabe todos, aliás, eles não têm de ciúmes de você, mesmo sabendo que eu divido contigo as coisas santas e profanas de meu cotidiano entediante aqui nas Terras Poluídas do Distrito Industrial...
Em fim, meu caro!!! desde que estou aqui tudo mudou para mim, mais isto será tema de novos escritos nas linhas de teu corpo belo em tempos futuros, agora quero lhe contar de uma visita que recebi nos estágios do dormir-sonhar-acordado.
Eu havia tomando aquela bebida verde irmã da azul (e ainda não tomei a dos vampiros, a vermelho sangue – já sei trocadilho sem graça!!!).
Realmente meu pequeno Magistellus, ela faz jus ao apelido:
Meu querido... Pare de reclamar de cócegas e preste atenção!!: ....
....Ele chegou sem convite,  como se dono da casa fosse, sentou-se no sofá, ajeitou-se, pegou minha carteira de cigarros em cima do banquinho plástico verde oliva, retirou um, acendeu e começou a fumar, soltando golfos de fumaça tóxica.
Após uns tragos, passou a ri cinicamente, e, comentou – este sempre me faz fazer horas extras..
Parou de repente, levantou-se, atravessou o pequeno corredor chegou até cozinha onde fica a geladeira branca, abriu a porta, puxou  a gaveta embaixo do congelador e pegou uma bebida, leu o nome na embalagem, elogiou a cor - verde é a minha cor predileta, apesar do senso popular achar que fico melhor de pretocomentou:  Spirit nome apropriado - bebeu um gole e voltou à sala trazendo consigo a latinha gelada de bebida.
Sentou-se novamente no sofá, pegou o controle remoto da tv e colocou no canal de noticias: Rompimento de Barragem em Mariana; ISIS assume atentado em Paris; Imigrantes se afogam nas costas da Europa; Cinco Jovens morrem em acidente ao voltarem de festa formatura; Traficante é morto em confronto com a Policia; Mulher; criança são atingidas por balas perdidas.... as noticias iam sendo debulhadas como um espiga de milho, Ele riu de novo e disse:  mais horas extras preciso pedir um aumento.
Eu continuei extático, sem saber o que fazer, ele notando meu constrangimento, ficou sem jeito, quase que ruborescido olhou-me com piedade e finalmente falou: desculpe minha falta de cerimônias, somos tão íntimos, te acompanho desde o exato momento em que foste concebido no útero de tua mãe, que achei que não precisaria pedir licença para entrar na sua casa, pois na sua vida, estou presente, apesar de você fingir que não me notasuas palavras foram piores que sua entrada repentina, pois, ele mim, era estranhamente familiar, mas, ao mesmo tempo completamente desconhecido.
Bebeu mais gole de Spirit e disse  - Deveria ter vindo a caráter, mas os estilistas dos estúdios não têm bom gosto quando se trata de me vestirem, alias, capuz preto e foice na mão é muito démodé, nem na idade média tais coisas cairiam bem em alguém. Meu nome é Oníkò[1].
Onde havia ouvido tal nome?
Porque sabia que o conhecia tão bem, e, ao mesmo tempo, que nada sabia sobre ele?
Pare - disse ele e continuou – Calma, existem elas também, aliás, nos tempos modernos não é politicamente correto, dar um sexo, cor, ou inclinações ao emissário de Ikú[2], pois pode ser tomado como intolerância e preconceito. Nós os emissários, os Ceifadores não fazemos distinção alguma no nosso trabalho, não nos importa as condições sociais, opções sexuais, os credos religiosos ou as filosofias de vida, pra nós tanto faz se for branco, negro, amarelo ou vermelho, macho, fêmea, ou hermafrodita, baixo, alto, magro, gordo, feto, criança, adolescente, adulto, velho... Ceifamos a todos para que se cumprir o O[3]. Alias como você vive pregando que Bruxaria é toponímica,  usarei termos da sua língua cultural ancestral no nosso papo, assim você toma vergonha na sua cara e deixa essa síndrome de vira-lata nacional, essa mania de conhecer a cultura, religião e corpus prático de feitiço de fora e não dá o devido valor ao que está abaixo de seus pés.
Fiquei aterrorizado, pelo que estava entendendo, aquela não era uma pessoa comum, ou melhor, não era uma pessoa de jeito algum e era o Ceifador de Ikú e sua presença ali comigo só podia significar uma coisa, e eu definitivamente não estava pronto para essa coisa - como a maioria de nós nunca esta e não se apercebeu que essa coisa esta sempre pronta para nós - Eu suava frio, meus olhos quase que saltando das órbitas, meu coração acelerava, minhas pernas tremiam, meus dentes rangiam, ele se divertia com isso, podia ver como ele achava aquilo engraçado.
Balbuciei – é...a minha... !!!!!!-  ele não me deixou terminar, colocou seu dedo frio nos meus lábios e uma calma repentina se abateu sobre mim, um cheiro de rosas amarelas impregnou todo o ambiente, sinal de que eu não estava sozinho - Rosa estava ali comigo -  nesse encontro e disse-me: sente-se – obedeci.
Não sei quanto tempo passou-se, ele ali em silencio me olhando já não mais com olhos de diversão, mas com olhar de complacência e piedade.
Finalmente quebrando o silêncio disse – Não vim ceifar teu emi[4] e nem te levar para Òrun[5].
De pronto respondi - Mas então você é o Ceifador de Ikú, e não deveria ser visto por ninguém vivo, Ifá[6] diz que somente aqueles que estão com seus dias contados no àiyé[7], pode senti-lo.
Ele viu minha ansiedade e procurando uma forma de me acalmar – Em um momento atemporal habitei Àiyé era um Bàbálawo[8], trabalhei  como assistente de Onípìpín Orun[9], por isso sabia a hora que cada homem encerraria seu ciclo[10] no Àiyé e por isso  quando cessou meus dias, recebi no Òrun[11] a missão de ser um dos Ceifadores de Ikú,  eu não sou a Morte, sou apenas um mensageiro, um ceifador, um Coletor. – Parou, pegou fôlego e continuou -  Cada ser nasce com seu destino traçado por Olórun e somente ele sabe a hora certa e o destino de cada um, eu apenas coleto as almas para o Òrun, faço a intermediação e há muitos e muitas como eu, o nome e a crença pode mudar, a cor da pele e os hábitos culturais podem ser diferentes, mas a nossa missão é igual para todos sem distinção.
Pasmo com a descoberta, não resistir à curiosidade e ele como bom e velho Bàbálawo, adivinhou minha próxima pergunta você quer saber o que é a morte?- e prosseguiu - Morte e Vida é um casal e gera nascimento, morte é o destino certo de tudo que é vivo, a morte deve ser vista como um processo natural e inerente a tudo que é vivo, pois ela está ao nosso lado o tempo todo e não se pode viver com medo da morte, mas também não se pode ignora-la, isso é burrice, fingir que ela só passa nas casas alheias é tolice, achar que ela nunca vem para nós é autoengano tomou ultimo gole de Spirit e prosseguiu - Preste atenção no seu dia, observe como você vive, quase que inconscientemente evitando Morte, você passa o dia tentando se livrar dela, quer um exemplo? Você atravessa a rua com cuidado, olhando para os lados, pois se vacilar, ela vem e te pega na forma de atropelo...  Morte é assim, ela espreita e pode te abraçar de forma violenta ou simples, no sono ou na dor. Mas ela não faz isso por mal, isso é sua natureza, ela apenas cumpre sua missão, Ikú é o Orixá que desce em toda cabeça sem distinção, aprenda e compreenda que mais cedo ou mais tarde, morte se deitará contigo.

Parou de falar, acendeu outro cigarro e fumou como se eu não estivesse ali, depois disse: Aliás, meu caro, você está em débito comigo, lembra da flecha quente que atravessou o pé de F? –  de súbito acendeu o sinal de alerta em mim – Pois bem,  três dia antes um èbo[12] foi arriado para encurta o Èmi dele (você já sabe quem foi e o porque), e eu já estava pronto para tocá-lo e ceifá-lo para Òrun, mas você interveio e seu Compadre desviou a seta quente, agora você está em débito comigo.

Não sabia o que responder, então disse a primeira coisa que me surgiu a mente ...Mas ela estava destinado a “coçar os cabelos brancos[13]”, então não foi uma intervenção foi um retorno ao Destino... - Oníkó me olhou friamente e disse: como você tem tanta certeza, por acaso você é Babalawo de Ifá? – Engoli em seco, o que poderia dizer.

Ele retornou a serenidade de antes, terminou o cigarro, suspirou e arrematou: Odú de Ori é coisa que somente Olórun designa, cada ser humano tem seu próprio Odú e, portanto seu Destino - Oníkó me olhou profundamente nos olhos e perguntou: Valeu apena sua intercessão? “ 

Fez uma pausa e continuouaprenda quando se trás carne de elefante sobre a cabeça, não se deve vasculhar o buraco de um grilo com o pé[14]

Ele me deu tempo suficiente de absorver o impacto daquele ditado ioruba e prosseguiu -  . Tudo tem um preço a ser pago, minha viagem de Òrun até Àiyé não pode ser em vão...

Me olhou nos olhos e sentenciou: ore ni baba ti ẹbọ[15].

Estendeu a mão pegou o controle remoto desligou a tv e com ar sério prosseguiu - Enia lásán po ju igbe[16]- O papo começava a ficar pesado, o clima começava a mudar, eu sentia uma áurea sombria se abatendo sobre o local,  Oníkó percebeu e retomou as rédeas da conversa e largou - “Àiyé Atí Ikú Okan Náa Ni[17]".

Ficamos em silencio alguns segundos que pareciam intermináveis – finalmente ele diz: Você pode trazer outra Spirit? confesso que sua cerimônia dessa fez teve o efeito devastador, pois a meu ver, quebrava de vez o que restava do clima de cordialidade que ele havia estabelecido - eu aluno e ele professor – fui num pé e voltei noutro, ofereci uma das latinhas – havia pegado duas abrimos quase que ao mesmo tempo e instintivamente ambos fomos com as mãos em direção à carteira de cigarros, a coisa foi tão automática que explodimos em risadas daquela situação. Fumamos, bebemos, em silencio, ambos com cara de paisagem.

Oníkó disse então: Não se preocupe, não vim lhe cobrar, pelo menos agora, irei acumular muitas milhas no seu ebócard, pois lhe conheço tão bem, que sei que você fará outras vezes uso dele, mas lhe adianto logo, aprenda: quem é, de onde veio, qual a sua origem, qual o seu destino.

Ele soltou um suspiro, depois dois e três, e para finalizar sentenciou – Você nunca se perguntou por que no merindilogun[18] sai muito Eguns[19] no seu Caminho? já estou cansado desta rotina... Quem me deve paga, para bom entendedor meia palavra basta.....”Elejo kì ímo ejo ro l'ebi k'ó pe lorí ìkúnle[20].

.... acordei no meu quarto sobressaltado, tinha sido apenas um sonho...
Meu pequeno Lobo ainda estava ali ao meu lado, acariciei sua pele canela, rocei meus lábios levemente em sua testa e vi que dormiu o sono dos justo...
levantei, fui até a sala, acendi a luz, peguei um cigarro,  e para minha surpresa, haviam cinco latinhas vazias de Spirit sobre o banquinho plástico e conclui..
.......A outra ver bicho, essa porra vê é espirito mesmos... 
...............................................ALEA JACTA EST......
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Dedicado a Duncan, que com sua simplicidade, sobre remexer a brasa quase extinta debaixo da camada de cinzas de meu coração... Bênçãos e Maldições no X.... Asè ò...




[1] Ikú Oníkó é um servente de Olórun, sendo criado para trazer de volta à alma do viajante a cidade do céu”. 
[2] Ikú palavra da língua yoruba que significa morte, identificado no jogo do merindilogun pelo odu owarin. É o único Orixá que incorpora em toda cabeça humana. Foi permitido e abençoado por Olodumare a conduzir o ciclo da criação. Designado a vir todos os dias ao Aiye escolher homens e mulheres a ser reconduzidos ao Orum, retirando o emi (sopro da vida), condição imposta para a renovação da existência. Sua celebração no ritual do Axexê comemora a volta do homem ao todo primordial, reafirmando o grande mistério e possibilitando outras vidas. Os vestes brancos neste ritual simboliza a verdade absoluta, morte e vida. kú é conhecido também como Oba Ajogun (Rei dos Ajogun) e sua esposa é chamada de Àrùn (doença).
[3] Odu é um conceito do Culto de Ifá, mas também usado no candomblé, interpretado no merindilogun, na caída de búzios. A palavra Odú vem da língua Yoruba e significa destino. Cada Homem (Ser) possui o seu destino, hora com passagem que se assemelham a de outros, mas sempre com alguma particularidade. Isso é melhor compreendido com o estudo do Odú, pois odu é o destino de cada um.
[4] emi (sopro da vida).
[5] Orun, num sentido geral, significa Céu, o lugar onde Olodumaré, os Orisás e os espíritos diversos habitam. A denominação de todos esses habitantes do Òrun é Ara Òrun, cuja principal diferença entre eles e os araàiyé (habitantes da terra) é a de que aqueles não necessitam do èmí, a respiração, para sobreviver, no dizer de J. E dos Santos – “o òrun é todo espaço abstrato paralelo ao aiyé”. Outros alegam que o Òrun é muito longe, sendo por isso que o recém-morto tem que adquirir energia, consumido a comida e a bebida oferecidas durante a s cerimônias fúnebres, antes da ida para a longa viagem. O Òrun é dividido em noves Céus de acordo com a evolução de cada pessoa. Orun Alàáfià. Espaço de muita paz e tranquilidade, reservado para pessoas de gênio brando, ou índole pacífica, bondosa, pacata. Orun Funfun. Reservado para os inocentes, sinceros, que tenha pureza de sentimento, pureza de intenções. Orun Bàbá Eni. Reservado para os grandes sacerdotes e sacerdotisas, Babalorixás, yalorixás, Ogans, Ekedes, etc. Orun Aféfé. Local de oportunidades e correção para os espíritos, possibilidades de reencarnação, volta ao Aiye. Orun Ìsòlú ou Àsàlú. Local de julgamento por Olodumare para decidir qual dos respectivos oruns o espírito será dirigido. Orun Àpáàdì. Reservado para os espíritos impossíveis de ser reparados. Orun Rere. Espaço reservado para aqueles que foram bons durante a vida. Orun Burúkú. Espaço ruim, ibonan "quente como pimenta", reservado para as pessoas más. Orun Mare. Espaço para aqueles que permanecem, tem autoridade absoluta sobre tudo o que há no céu e na terra e são incomparáveis e absolutamente perfeitos, os supremos em qualidades e feitos, reservado à Olodumare, olorun e todos os orixás e divinizados. Alguns dos òrun relacionados se equivalem pela finalidade que possuem.  O Òrun para onde iremos após a morte é baseado nos atos praticados na terra e devidamente registrados no orí inú, que retorna para Olódùmarè. 
[6] Ifá (em yoruba: Ifá) é o nome de um oráculo africano. É um sistema divinatório que se originou na África Ocidental entre os yorubás, na  Nigéria. É também designado por Fa entre os Fons e Afa entre os Ewés. Não é propriamente uma divindade (orixá), é o porta-voz de Orunmilá e dos outros orixás. Orunmilá, muitas vezes é designado como Orixá do destino na cultura africana Yorubá..
[7] Àiyé é o mundo fisico. Segundo Ifá Órun (céu) ou outro-mundo é nossa origem, de onde partimos em viajem ao mundo (Àiyé) e dependendo de nossas ações, poderemos regressar ao Orun para podermos ser lembrados, e após retornarmos ao Àiyé, isso tudo julgado aos pés de Olorun. 
[8] Babalawo (em yoruba: bàbáláwo pronúncia babalauo) significa "pai ou senhor dos segredos ou pai, no conhecimento das coisas materiais e espirituais” é o nome dado aos sacerdotes exclusivos de Orunmilá-Ifá do Culto de Ifá na religião yoruba, das culturas Jeje e Nagô. Estes não necessariamente entram em transe, sua função principal é a iniciação de outros babalawos, a preservação do segredo e transmissão do conhecimento do Culto de Ifá para os iniciados. 
[9] Onípìpín Orun é quem mantém o registro do instante em que as pessoas devem regressar ao Òrun, informando a Ikú, que deve ir ao Áiyé e trazer o viajante de volta
[10] Toda religião encara isto: Nascimento, Vida e Morte (Ìbí, Ìyé, Àti Ikú), o Pós-Vida (Iyè Lébìn Kú), o Julgamento Divino (Ìdájó ti Olórun) e o possível retorno em outra vida, sucessivamente (Àtúnwa). 
[11] Orun, o céu e também conhecido como “além” é o nosso lugar de origem e onde devemos regressar, ao contrário do pensamento cristão que o céu é o melhor lugar, dentro da nossa cultura Yorùbá, a melhor coisa é estar vivo, portanto o Àiyé (terra) é o melhor lugar para vivermos. Nossa cultura é totalmente baseada na reencarnação.  O fato dos humanos poderem escolher o seu destino não se limita em saber quando de seu regresso a seu criador, ou seja, a o seu local de origem.
[12] Ebó (do iorubá ẹbọ, oferta ou oferenda[) é uma oferenda das religiões afro-brasileiras dedicada a algum orixá, podendo ou não envolver o sacrifício animal.
[13] Ditado popular que quer dizer viver muitos anos até a velhice.
[14] Ditado Popular Ioruba que significa: Não se deve arriscar a perder algo importante para algo que não é.
[15] Bondade é o pai do sacrifício.

[16] As pessoas más são comuns como os arbustos.

[17] Vida e morte: Ambas são Idênticas.

[18] Caída dos búzios no Jogo de Ifá.
[19] Os mortos, as almas dos mortos.

[20] Aquele que admite suas faltas não as paga por muito tempo.


quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

ALEA JACTA EST - PARTE III

O DIÁRIO DE AZAZEL – PÁGINAS 1715 – 1717

“Perfeição da Vida Por que prender a vida em conceitos e normas? O Belo e o Feio... O Bom e o Mau... Dor e Prazer... Tudo, afinal, são formas E não degraus do Ser!”.
Mario Quintana

Olá meu querido Diário, não faça essa cara de zangado, por eu ter passando alguns dias sem te alimentar com as linhas de minha pena e com tinta de sangue, tente entender que às vezes preciso de um tempo só pra mim e por isso não te levei no meio passeio pelo Distrito. Mas sua fome será saciada, deixe-me contar sobre teu corpo pálido algo inusitado.

Meu querido...

Apesar de estarmos a poucos quilômetros das Terras do Marques, as coisas estão andando relativamente muita calmas aqui no Distrito Industrial, sentindo-me um tanto mais a vontade, decidir dá uma volta, não como faço diariamente, cruzando o Distrito de um lado a outro sem reparar de fato em como ele era, aliás, fora o céu sempre cinza pela fumaça e o ar quente e abafado, e os efeito dos gases das indústrias, não tinha de fato observado o lugar - por isso não levei você comigo, pois os augúrios eram favoráveis e não precisaria lançar mão de você em caso de urgência..

Andei e conheci boa parte do Centro e bem ali no centro do Distrito, há uma praça, muito bem cuidada, dividida em duas partes, a primeira parte fica do lado leste -  contendo, quadras de basquete, vôlei e futebol, espaço para skate e patins, um pequeno parque infantil, uma caixa de areia - e a segunda parte fica a oeste – neste lado há  uma bela praça arborizada entre elas, bambuzais e canteiros de flores, cercados por aros em ondas, também há belos bancos de ferro (pintados de prata) e um belos jorros d´água sobem de piso e são iluminados á noite por refletores de cores variadas - e, dividindo as duas partes da Praça, há um posto da Policia Distrital.

Neste local, cercado, por lanchonetes famosas - e não tão famosas – há também, lojas populares e de grifes, templos religiosos, e, e em todos os lados desse retângulo há vias bem esfalfadas e sinalizadas para os veículos sempre em movimento - vi idosos, adultos, jovens e crianças, passeando, conversando, falando dos mais variados assuntos, outros brincavam, jogavam, namoravam e trocavam juras de amor, em fim, ali é um ponto de efervescência social, um ponto de convergência das raças, um lugar de inteiração entre os que sabem e os que guardam o segredo do Pacto ou trazem a marca dos proscritos.

Respirei profundamente - esperando sentir, o fraco  odor de amônia que impregna  todo o Distrito - e para minha surpresa, naquele espaço, ele era totalmente ausente,  ali o ar cheirava levemente a bosques e matas, o ar era totalmente diferente e limpo – vi pequenos roedores e saguis, pássaros e outros pequenos animais  nos nichos de plantas, arvores e flores, o que fazia daquele espaço um local onde a vida era sentida, não fosse pela arquitetura, diria que ali era um pequeno pedaço do Éden.

André – vaso usado, temporariamente, como hospedeiro pelo meu servidor Íncubo - reparou na surpresa que se estampava em meu rosto e no da minha cria humana disse: Vocês não esperavam isso néh? – como que adivinhando minha resposta ele disse: Este Distrito tem seus mistérios – e rimos os três disso.

Realmente eu estava muito surpreso com aquela Praça, tudo era perfeito, perfeito demais – até mesmo para um Distrito Governado pelos Anciões – cujo lema era: ABSQUE ARGENTO OMNIA VANA  (Sem dinheiro, tudo é vão) - aquele lugar estava por demais perfeito - meus instintos me diziam: não fique surpreso e sim preocupado com a perfeição deste lugar, pois ninguém jamais conseguiu manifestar em expressão visível a perfeição de qualquer grau-  mas  perfeição, só é perfeição se não tiver imperfeição alguma, tão certo assim, que logo um pequeno detalhe me atraiu os sentidos.

Contrastando com toda a beleza do lugar, havia um senhor de idade, cabelos e barba totalmente grisalhos, pele negra, rosto marcado pelo sol e pela idade, no pescoço usava algumas guias - que lembravam o culto aos orixás –, um rosário de madeira e uma medalha de São Cipriano, que pendiam até o peito. Sua camisa velha e rasgada mostrava remendos de vários outros retalhos, sua calça, também velha e amarrotada, também continha remendos. No seu lado esquerdo, ao chão, um saco de linhagem sujo - cujo conteúdo não saberia dizer.  Pude ver mãos calejadas – que seguravam um pedaço de pau, que fazia às vezes de cajado. Ele estava sentado no lado norte da praça,  próximo a fonte de água, cercado por pelos menos cinco cães de ruas, com quem dividia, um pouco de resto de comida e água. A cena me deixou em êxtase, pois, sua aparência, apesar de suja, demonstrava altivez e às vezes me fazia lembrar ora daquelas imagens de Preto Velho e oras a imagem de também São Lázaro. Parei a poucos metros dele e observava-o.

André, vendo meu êxtase, disse: Pare de olhar assim, seu Antônio tá aqui há muitos anos, mesmo antes de eu nascer, meu Pai me disse que seu Antônio já era velho no tempo em que era jovem e solteiro e desde aquele tempo do ronca que ele já mendigava aqui, ele pede esmola pra beber. Porra, vamos andar tem muito pra ver ainda.- o vaso do meu Servidor falava, mas eu não conseguia sair dali, não conseguia parar de olhar para seu Antônio.

Seu Antônio estendeu a mão em minha direção e pediu – Moço me dê uma esmolinha pelo amor de Deus, para eu comprar comida pra mim e meus cachorros – Prontamente me aproximei, e acho que influenciado pelo que André tinha dito e falei – É pra comprar comida mesmo né, não é pra comprar cachaça não né? 

Ele fixou seus olhos negros em mim respondeu:
E se fosse? Muito me admira alguém que se diz amoral, me julga justamente, pela moral enraizada na própria Psique?

 – Aquela resposta me pegou de surpresa, não tinha como retrucar. Seu Antonio continuou a me bombardear com perguntas.

Qual é a sua intenção ao me dar a esmola?

Você quer saber se valorizei seu ato de compaixão?

Sua intenção de me ajudar só teria efeito se eu comprasse comida?

O que vale mais seu ato dar é ou o que farei com o que me deu?

O bem que você acha que esta me fazendo só seria real se eu comprasse comida e seu comprasse remédio ou crack?

Qual sua responsabilidade se ao me dar eu comprar uma faca e assassinar alguém, ou então gastar com comida ou droga?

Ou quer de fato ao me dá esmola? Dar por dar ou me converter a sua forma de pensar e cercear minha liberdade de escolher o que fazer com o que tenho ou ganho? Quer me ensinar os bons costumes e a moral vigente?

Fiquei extático e meu corpo não teve outra reação, se não, diante dessas e outras perguntas, sentar-me em frente a ele para escutar.

Ele continuou – pelo visto não te achas Mestre, pois em anos tu és o primeiro que senta-se comigo aqui – logo percebi que sua aparência era uma mascara e respondi – Senhor, sou apenas um buscador, um exilado – ele de pronto retrucou – exilado pela marca e maldição que carrega em teu sangue e pelo prego que quando aquecido te faz ir da floresta ao deserto, e, do deserto ás sombras. Mas já que sentou, ouça-me, as pessoas passam por mim e sentem nojo, sentem pena, e quando me dão algum dinheiro sempre recomendam que compre comida, se não, nunca mais me darão nada, essas mesmas pessoas batem ou enxotam os pequeninos que me acompanham e me protegem, sim, essas criaturas de Deus, estes cães, sujos, fedidos, sarnentos e pulguentos, e fazem isso com a maior naturalidade e depois ainda vão para seus templos realizar seus atos de adoração a seus Deuses. Como conseguem fazer?

Respondi: amo cães, e não os maltrato – Seu Antônio, mais uma vez fixou seus olhos nos meus e como que perscrutando minha alma disse: você trás no sangue a marca, você é considerado por eles como um parente deles, e só luta contra os seus parentes pela própria vida ou para proteger a Matilha  – minhas percepções se confirmaram, que não estava diante de um humano.

Seu Antônio, então fez uma pausa, afagou cada um a um os vira-latas, que lhe retribuiu com lambidas e continuou: Sabe porque as pessoas agem assim? – respondi: não.

Seu Antônio então me respondeu: Porque agem a semelhança dos deuses que servem, eles não conhecem o Sagrado a não ser através da escravidão do credo e da moral, o que erroneamente chamam deuses ou deus e que servem, é uma coisa aterradora, exige adoração, submissão, temor, e obediência total, exige que matem os que não adorarem como  manda o credo ou fé. Que ser este? É Deus? Como pode um “Ser Supremo”, Auto-Suficiente, Absoluto, imutável, transcendente, ser pior em sentimentos e exigências que a mais baixa de suas criaturas consciente? Um ser que se diz Supremo e se alimenta do temor não pode ser Chamado de Deus.. Deus é muito maior, Deus é amor, e essas pessoas tem falta de amor, e isso é um grau de imbecilidade, porque o amor é a perfeição da consciência.

Seu Antonio parou e abriu o saco de linhagem e tirou de lá uma garrafa plástica contendo um líquido avermelhado, que julguei ser vinho, em seguida um pacote de fumo, e um pequeno maço de papéis, fez dois cigarros, verteu parte do líquido numa caneca de alumínio sem brilho e desgastada, tomou um gole e me ofereceu, e sorvir ainda admirado pelo que ouvia, acendeu um cigarro e me passou e em seguida acendeu o dele e fumamos e bebemos por alguns minutos.

As pessoas passavam e achavam a cena bizarra e eu não estava nem um pouco incomodado  

Seu Antonio prosseguiu -  Elohim disse, “façamos o homem, ó Querubins, conforme a nossa imagem e semelhança” e o homem disse para que possamos dominar é preciso que Deus seja a nossa semelhança e não nós a dele, assim, eles criaram a  religião.

Então – disse eu e continuei – pode ser que a arrogância humana, tenham mudado  a imagem do Deus Infinito, em semelhança de si mesmo, impondo aos demais pela força e pelas armas, o deus finito ?

Em resposta seu Antônio disse: o homem criador da religião adaptou  - a bel prazer de suas conveniências  e desejos de dominar ao próximo - o Imutável em suas frustrações temporais, o Intemporal foi mudado no credo para o temporal, e para resgatar a humanidade para o ponto original, para o centro da Encruzilhada  o Primeiro-Raio-Luz- caiu na carne, no meio do Éden, e ali nasceu Caim, o raio que tocou a terra, o martelo que bateu na bigorna, e pelo sacrifício de Abel, ele quis re-velar aos humanos a tocha sobre a cabeça do Pai-Bode, o Espírito que é Fogo e Luz, que é Deus-Dentro-Si, quem se é, qual a sua origem e qual é o seu destino, ele quis apontar a direção ao Paraíso perdido. Mas, a moral e bons costumes, o exilaram e ele perambulou pelas terras desérticas da solidão.

Seu Antonio repetiu os gestos do cigarro e vinho e os dividiu comigo, partilhou pedaços de pão francês entre os cinco cães que comeram felizes o pouco que tinham, e continuou:  Ele retornou novamente e ensinava ao povo que Deus não era o “Senhor da Guerra e dos castigos, sedento por sangue e vingança”, mas era Abba, O “Pai Supremo” de seus filhos pródigos e novamente foi sacrificado.

Ninguém entendia nada - André e a minha cria humana ficaram de longe - todos passavam e viam admirados: um mendigo e homem bem vestido sentados no chão de ladrilhos da Praça Central do Distrito – os que sabiam e os guardavam o Pacto não estavam imunes ao fato, sabiam o que se passava ali -, sorvendo goles de vinho de terceira categoria, fumando cigarros de feito com fumo e papel. E eu via diante de mim, um Espírito Guardião, um Sábio.. Levamos horas ali falamos sobre ..... Deus é muito mais do que possamos imaginar, muito mais do que queremos que fosse... até que ele me disse: vá agora, está ficando tarde – Chegando em casa, peguei você para escrever meu Pequeno Magistellus e cá estamos nós – ALEA JACTA EST.

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P.S:  O texto é composto de mentiras símeis aos fatos... “e dizer mentiras símeis aos fatos é furtá-los à luz, encobrí-los. As mentiras são símeis aos fatos enquanto só os tornam manifestos como manifestação do que os encombre " ele, revela assim, similitude que se oculta na verdade e na mentira no estreito caminho entre o cinismo e a ingenuidade.....